Escrito no dia em que saí de Lisboa
Por vezes, temos de caminhar para encontrar um caminho. Por vezes, o que construimos na vida construiu-nos mas já nos ultrapassa, é maior do que nós mesmos e somos arrastados. Por vezes, alguém dos nossos afectos tem de partir. E vamos-lhe dizendo que parta, que faça o que tem a fazer, mas perguntamos-lhe se fugir da sua própria vida resolve alguma coisa, se mudar de lugar não transporta as mesmas questões. Porque temos medo, porque antecipamos saudade, porque na verdade não nos queremos longe. Sim, mudas de lugar e transportas os teus problemas contigo, e as questões, e as incertezas e incoerências. Mas enfrentamo-las noutro lugar, e não no quotidiano do nosso caos caseiro. Vemos tudo a partir de uma outra vida. Tudo se torna então imprevisível. Por vezes, não se trata de mudar de lugar, mas de respirar, de obter a ilusão de que a escolha é mesmo nossa, como queremos viver, porque mesmo ilusória ou temporária, é um movimento de liberdade que nos ajuda, de qualquer forma, a pensar.
Trata-se mais de um intervalo. De um fôlego para nos reencararmos e aos outros. De tomar o peso, sem as amarras do que fizemos, a como podemos ser melhores para fazermos ainda melhor. Sozinhos, sentir com quem queremos estar. E como. Avaliar. Sentir. Medir. Ou conhecer o novo.
Lamber de feridas? Não, um intervalo não resolve o que por vezes nem uma vida inteira. Não é isso. Bem... ok... também. Mas em muito pouco tempo elas deixam de doer ou mesmo de existir, perante a necessidade de responder ao aqui e agora. Mas é sobretudo começar de novo onde é possivel. É voltar a dar prioridade à imaginação que só é possível em liberdade e a uma certa capacidade camaleónica e vulcânica de nos reinventarmos, mesmo quando já sabemos quem somos.
Só quem tem raízes pode ousar libertar-se delas. E nunca deixamos de tê-las, mesmo quando optamos por seguir caminho novo. Saudade certa, também pensar nos outros. Nós e os outros. Nós com os outros, todos os que nos fazem falta e a quem queremos voltar, aqueles com quem queremos permanecer, aqueles que nos quiserem de volta. Sejam quais os caminhos, falta-nos sempre alguém. Mas isso é suportável quando estamos capazes de nos construirmos.
A vida é grande. O mundo é grande. O assombro da descoberta infinito. E a felicidade pode estar entre os dois lados de uma rua. Porque tudo é também pequeno, desde logo esta humanidade num planeta casca de noz, humano bicho ilógico num universo de sombras em que não sabemos ao que vimos nem sabemos viver, frágeis mas tão frágeis, vulneráveis, perecíveis, sujeitos a ser tragados pela vida ou pela morte a qualquer momento, de propensão demasiado fácil a sermos os primeiros a fazer-nos mal uns aos outros e tanta propensão para a exploração, a violência, a injustiça, e porém... tão extraordinários.
A felicidade não é chegar, ela está em momentos do percurso. E no tentar. Em não cair, também, na tentação de seguir sozinho. Na modéstia, que por vezes tem de ser reaprendida e tem mais valor quando assim é, e na curiosidade. Em reconhecer os nossos limites, bem como a força que temos quando nos conhecemos. Em conhecer o medo que temos de viver, o suficiente para vivermos com toda a vontade. Em darmos o nosso melhor e não aceitarmos dar menos. Em sabermos negar-nos a dar se isso é necessário para redescobrirmos o que queremos dar. Provavelmente, porque somos feitos do que fazemos, daremos para o mesmo para que sempre demos, a quem antes quisemos dar com ou sem retorno, mas com essa garra, alegria e vontade das quais não nos contentamos com uma encenação arrastada, mas apenas entrega convicta e acção apaixonada.
De facto, não é fácil ser pessoa e viver uma vida injusta numa sociedade humana ainda mais injusta. Ser humano é ser moral, já isso é uma injustiça cósmica, porque nos mantém em permanente insatisfação. Menos fácil ainda é ser uma pessoa consciente. Com consciência social, por exemplo. Política. Humana. Há mesmo um karma do militante, e já sabiamos não ter escolhido a vida fácil da ignorância e da desistência, da entrega acrítica a um mundo ilógico e injusto, e à mesquinhez que também é humana.
Isto é então um intervalo - ou mais do que isso, porque a ruptura arrasta a imprevisibilidade - para recuperar essa força e as capacidades que me conheço, um intervalo - ou uma mudança de rumo permanente, pouco importa agora - porque a dimensão pessoal o reclama. E também aqui, ele, o pessoal, é político. O colectivismo marxista não é, afinal, o pólo antagonista da individualidade do sujeito, aí estão todos os pensamentos políticos do indivíduo, como o queer ou o pensamento feminista sobre a contrucção do género, a comprová-lo - sem indivíduo nao há colectivo nem política, da mesma forma que sem colectivo nao há política nem há revolução, pelo menos uma que valha a pena.
E sim, o plural majestático é só uma facilidade de escrita... toda esta reflexao é sobre mim. Neste texto, estou a falar de mim.
Nota post-partida (hoje, ainda em Menorca):
Decidi nao voltar a Lisboa neste momento, em principio só o farei no final do ano. Nao quero ir agora a Lisboa, tenho pouco dinheiro e preciso de seguir já em frente e arranjar trabalho, amanha atravesso mediterraneo oito horas num navio gigantesco (ai o enjoo), vou ver a solange a barcelona, onde fico uma semana, e depois vou para o país basco. Nao fazia sentido estar a gastar agora mais dinheiro em viagens, e emocionalmente também creio que seria complicado para mim e para outréns... por outro lado, quando penso em seguir directo com esta aventura sem passar por Portugal, sinto-me bem... porque ter saído me trouxe a um estado de relax, mesmo quando as coisas me correm mal, que nao me conhecia. Sinto-me mesmo muito bem, e muito bem comigo. E isso decide a coisa :)
A gente vê-se pelo natal.